Quem nunca desejou viver a vida de outra pessoa? Uma vida com as roupas que sempre quis, comidas saborosas, pessoas que veêm o quão importante você é e te tratam da maneira que merece. Não precisamos nem ir tão longe, quem nunca desejou poder ter o cabelo perfeito sem esforço algum? Coraline Jones pôde viver essa outra vida. Acontece que isso, com toda a certeza do mundo, não foi um sinal de sorte.
Em Coraline, a garota de mesmo nome tem uma rotina que consiste em conhecer seus vizinhos nada convencionais ou ser dominada pelo tédio após a mudança para o Palácio Cor-de-Rosa, uma espécie de mansão vitoriana que foi dividida em quatro apartamentos, no interior da Inglaterra. Se mostrando uma grande exploradora, Coraline desbrava os arredores da construções e se aventura por entre os diversos cômodos da casa, procurando algo que a tirasse da monotonia do lugar em que se via presa. Ao encontrar uma porta que dá entrada para uma outra casa (igual a sua, só que melhor), uma outra mãe (igual a sua, só que melhor), e um outro pai (igual o seu, só que melhor), ela achou algo para animar sua estadia. É uma pena que a sua outra mãe e seu outro pai tenham botões negros no lugar dos olhos e digam que a única forma dela continuar vivendo aquela vida (igual a sua, só que melhor) é costurando botões em seus olhos.
— A mensagem é a seguinte: Não passe pela porta. — Fez uma pausa. — Isso faz algum sentido para você?
Como falar sobre o livro de Coraline sem falar sobre o filme de Coraline? Melhor: como ler Coraline sem pensar no filme Coraline? A resposta é decepcionante: não tem como.
Coraline foi um filme que marcou a infância de muitos, sendo até hoje um filme extremamente assustador e com uma estética única que maravilha quem assiste. A comparação é inevitável, mas a frustração pode ser evitada: deixe o livro te conduzir, não corra até a linha de chegada e o espere fazer o caminho até si. Além disso, não pense que vai ler o filme: as diferenças são muitas, cabe a você decidir se isso é um problema ou um trunfo.
Neil Gaiman tem a capacidade de me transformar em uma confusão ao final de seus livros. Sempre fica aquela sensação de que eu não gostei totalmente do que li. Um gosto agridoce na boca que não some de jeito nenhum. São muitos pontos fracos com pontos fortes que parecem nivelar a obra, mas que não nos impede de ainda sentir um certo incômodo. No começo dessa leitura, pensei que seria mais um desses casos.
Eu errei.
O começo do livro é entediante. A sensação é de que nada acontece e, no meu caso, acho que a comparação foi o maior problema. Eu ficava pensando em como senti medo em tal cena e não senti nada no livro, questionava a adição de personagens, tentava entender se o livro tinha uma atmosfera tão diferente ou se eu não havia conseguido entrar em harmonia com o que lia. Então, na virada do primeiro para o segundo ato, encontrei o meu norte.
— Boa tarde — disse o gato.
Os personagens tem voz própria. As falas poderiam não ter explicação nenhuma sobre quem as dizia e ainda assim seria impossível não saber exatamente de que boca aquelas palavras saíam. Eles são complexos, chamam a atenção, tem um humor afiado (cada um a sua maneira) e conseguem emitir tanto carisma. Os personagens são fortes, cada um há sua maneira: Coraline se fortalece no medo, a Outra Mãe nos seus jogos mentais, o gato (nada de letra maiuscula, isso é coisa de humano) em sua arrogância floreada de lógica. Você se importa com eles e, em um livro de terror, isso importa demais.
E, é claro, você também os teme.
— Eu juro — disse a outra mãe. — Juro pelo túmulo da minha mãe.— Ela tem um túmulo? — perguntou Coraline.— Oh, sim — disse a outra mãe. — Eu mesma a coloquei lá. E quando descobri que estava tentando arrastar-se para fora, coloquei-a de volta.
A outra mãe, tanto no filme como no livro, é uma das personagens mais aterrorizantes que já existiu. Ela carimbou minha mente durante a infância e ainda não me esqueci dos dedos que se transformam em garras afiadas ou da manipulação constante ou dela traçando sua teia ao redor da Coraline. Eu poderia continuar, mas você já entendeu.
Ela tem uma maldade faminta que se mistura com uma espécie de afeto por Coraline. Às vezes, a criança é um rato que o gato deixa escapar para se divertir. Outras, ela é um rato que escapou por conta própria e irritou demais o gato. Em todos os momentos, Coraline é um objeto de desejo. A outra mãe a ama, mas não mais do que amaria um bicho de estimação suportável.
A única diferença que consegue elevar o filme é a mudança na relação de Coraline com seus pais: no filme, eles eram apáticos e quase incapazes de cuidar da menina, no livro eles são pais normais que estão tentando se acostumar a nova casa. No filme, é melhor. Não, no filme é pior, e isso deixa tudo mais assustador. Se entende o porque da Coraline continuar naquela casa com pessoas com botões no lugar dos olhos.
Coraline começa com um terror de casa assombrada, se transforma em um conto sobre fantasmas e passa por uma aventura praticamente épica, terminando com um gosto doce na boca e bons sustos na mente: tomara que tenhamos todos a coragem de Coraline. Se temos medo, já é meio caminho andado.
Título: Coraline | Autor: Neil Gaiman | Editora: Intrínseca | Tradutora: Bruna Beber | Nota: 4,5

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