RESENHA: AUTO DA COMPADECIDA - ARIANO SUASSUNA - Mais livros, por favor

RESENHA: AUTO DA COMPADECIDA - ARIANO SUASSUNA

Publicado em sábado, 9 de abril de 2022


ALERTA: SPOILER

Em um dia, João Grilo e Chicó sobreviveram a gatos que descomem dinheiro, a falta de um copo d'água em meio a uma doença, cachorros enterrados em latim e o Encourado dividindo os mortos entre malditos e benditos. Bem, eles tentaram. Acontece que, às vezes, a morte não significa o fim. 

João Grilo é um trambiqueiro de primeira linha. Ele sabe mentir e, ainda mais importante, sabe saltar de mentira em mentira de forma que elas não se trombem no meio do caminho e ele se torne um resultado sangrento de suas tramoias. Chicó é um bobo de última qualidade. Um contador de histórias pra boi dormir, nada além de um mentiroso inocente demais para mentir bem. Juntos, o Palhaço e o Bobo fazem uma das duplas mais memoráveis da literatura mundial e ocupam o imaginário brasileiro há mais de meio século.

Eu vou dar uma apunhalada na barriga da Chicó.
Na minha não.
 Deixe de moleza, Chicó. Depois eu toco na gaita e você fica vivo de novo!

Desde as situações comuns do imaginário e cordéis nordestinos (já ouvi a história do gato que descome dinheiro — que no caso era cavalo , essa sendo bem mais antiga que a versão da peça) até os diálogos inteligentíssimos (sejam eles ditos por personagens inteligentíssimos ou não): a comédia não tem um segundo de descanso. Até mesmo nos momentos dramáticos, quando a realidade do nosso mundo vaza para a fantasia bíblica de Ariano Suassuna, o riso ultrapassa a barreira do ar escapando pelo nariz para uma gargalhada genuína.

E esse humor magnifico não seria nada sem personagens magníficos.

De início conhecemos o Padre, um homem que não demonstra qualidade alguma para com os pobres mas sente todo tipo de compaixão quando atende os ricos, ignorando um pedido para benzer um cachorro prestes a morrer. Logo o Sacristão, um assustado hipócrita e ladrão, se une a cena para tentar arranjar um enterro para o cachorro que ele pensa ter deixado uma herança para a Igreja (e para si, consequentemente, graças a uma vingança de João Grilo contra o Padre e os donos do cão). O rico Antônio Morais entra sem querer na confusão e precisa ouvir o padre chamando seu filho de animal e sua esposa de cadela. O bispo também se mete nessa conversa, apenas por ter ouvido as reclamações do rico que precisa puxar o saco, e se vê enfeitiçado pelo dinheiro que João Grilo e Chicó se viram nos trinta para arranjar (e coitado do gato que eles envolvem nessa resolução). Então os donos do cachorro, o Padeiro que não sabe fazer uma única escolha sem a sua Mulher dar o aval antes, se veem presos com os outros no meio de um assalto violento.

— Mas me diga uma coisa, havia necessidade de você me matar?

Em um espaço de duas páginas, uma vingança se transforma em uma conversa com Cristo, o Encourado e a Compadecida. Nesse momento, tudo muda. Se vê uma faceta dos personagens que antes não se mostravam visíveis. Nesse momento, mesmo que vejamos isso em toda a peça, entendemos que esse é um produto primariamente brasileiro. Eu não falo de um Brasil que se passa na Avenida Paulista, no Copacabana, no topo do Cristo Redentor. Não, esse é um Brasil que provavelmente eu e você conhecemos melhor que esses lugares que passamos a vida assistindo. É um país formado por pessoas pobres largadas sozinhas no mundo e que desde cedo precisaram lutar pelo prato de cada dia. É um Brasil de indecentes injustiçados, ladrões honrosos e assassinos perdoados. Seja um Brasil, seja o Brasil, foi nesse lugar que os personagens nasceram e talvez eles mereçam um pedido de desculpas por isso. Talvez, com a intervenção da Compadecida, eles ganhem uma segunda chance.

— Para mim, tanto faz um branco como um preto. Você pensa que eu sou americano para ter preconceito de raça?

 

Foi uma honra poder ler essa peça. É uma honra poder dizer que essa foi a primeira peça que li. Eu ri tanto com esse livro, minhas bochechas ardiam e a barriga se dobrava, ri até mesmo enquanto chorava. E não pense que algo ser risível diminui o seu valor: cada risada era um soco de realidade. Nós sonhamos com um mundo melhor e lutamos por ele, mas a realidade é conhecida por todos e, às vezes, nós merecemos rir dela.


A edição que li, da Editora Agir, vem com um texto de apoio de Braulio Tavares que conta muito da vida do incrível Ariano Suassuna e de como ele usa a sua cultura para criar a peça. As comparações com a Commedia dell'Arte européia e a explicação sobre como os cordéis se interligam ao autor de uma forma que apenas agrega ao conteúdo da peça são, particularmente, brilhantes.


Provavelmente você já conhece a série baseada na peça. Já ouviu um "'I love u' significa morena em francês". Talvez, assim como eu, ainda não tenha esquecido dos portões abertos para o inferno. Com diversas diferenças, a soma de novos personagens e diferentes arcos de história, é uma das melhores adaptações já feitas.


Não existe uma palavra melhor ou mais justa que "perfeição" para descrever o que li. Eu tentei, procurei e usei muitas palavras, mas no final é apenas uma a que importa. Perfeito, simples assim.


Título: Auto da Compadecida | Autor: Ariano Suassuna | Editora: Agir | Nota: 5

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